Voar Voando

“Quando voei de Asa Delta, pela primeira vez,

descobri porque cantam os passarinhos”

disse-me Miguel, o simpático taxista que comigo passeou.

Voar 2

Voar 3

Voar 4

Renascia e, por isso, haveria de agradecer, mais tarde.

Era uma segunda de manhã cedo, o Voo de Asa Delta estava marcado há uns dias, mas a Mariana mandou um WhatsApp a dizer que a previsão meteorológica tinha errado e a nossa hora, as onze, tinha de ser adiada. As nuvens estavam cerradas e muito baixas em São Conrado, praia onde pousaríamos, por isso adiámos para mais tarde. Mas o que tem de ser é!

O Miguel apanhou-me na Riachuelo, no Hotel Vila Galé, seguimos para a Avenida Atlântica e daí fizemos toda a orla passando por Copacabana, Arpoador, Ipanema, Leblon, Favela do Vidigal, Niemeyer e São Conrado para subirmos já com Renato Janssens, o meu instrutor de Asa Delta, toda a estrada pela Floresta da Tijuca que nos levaria à Pedra Bonita. O nosso ponto de partida!

Assim que chegamos vários ajudantes montavam o Asa Delta e o Renato ia dando-me instruções, nomeadamente de correr, algo que não faço, eu não corro. Mas corri. Tive que correr.

Vesti o colete, apertei os cintos, engatei os ganchos e respirei fundo. Entreguei a minha vida aos céus e a Renato que era quem me levava.

– Pronta Maria? Agora não dá mais para voltar atrás!

E eu corri. E o Renato correu. E nós voamos.

Voar o Rio de Janeiro foi …

Não tenho palavras para a sensação de voar sobre o Rio de Janeiro, resta-me agradecer, agradecer, agradecer pela vida que me foi dada, pelo que escolhi fazer dela e, por este, renascimento.

hm

 

Em pensamento …

Na minha vida, tudo acontece com um propósito, no dia que voei como um pássaro, lembrei-me que tive de construir as minhas próprias asas …

18 ANOS COLOR

Quando me sentei a escrever estas linhas dei-me conta que mais de vinte anos tinham voado sobre a minha vida e que nunca, em tempo algum, havia refeito aquela noite, aqueles dias. A catarse chegava de enxurrada lavando a alma com as lágrimas que escorriam livres, soltas pelo rosto. Estava pronta. A cores, com duas mãos, olhava aquelas imagens dum tempo que não mais voltou.

Tinha feito dezoito anos e achava-me invencível. Entrara directo na faculdade para um pouco ambicioso curso de relações internacionais que me dava a conhecer um universo alargado de pessoas, hábitos, costumes, regras e contra-regras, que no colégio católico feminino me tinha sido vendado. A redoma daquela casa colegial, soube-o anos mais tarde, seria a minha salvação. Os valores foram-me transmitidos, no dia a dia, através daquela gente que me exigia muito mas me queria tão bem.
Era o início de uma noite estrelada e fria que se queria longa, véspera de 1 de Dezembro, então ainda feriado da Restauração da Independência. O início começava tarde, muito tarde, e ria-me feliz com amigos de ocasião que faziam amizades como o vento, ora fortes e esperadas, ora brisas suaves de um dia agradável. Nada consistente. Nada perene.
Tropecei, caí. Assim, do nada, no chão frio. Não mais me levantei. Não mais consegui falar. Sequer pensar. Em urgência, de lenço branco de fora, fui carregada em braços a toda a bolina, numa viagem sem fim, até àquelas luzes brancas que me haviam de não largar, por muito tempo.
Nada de grave, diagnosticaram. Excessos, talvez alguma droga. É aguardar o tempo. Logo passa. Não passou. Passaram as horas e o desespero vinha varrendo tudo à sua volta, como uma tempestade que se faz anunciar ante um vendaval, um ciclone, um tornado. Telefonemas. Zanga. Raiva. Medo. Ninguém sabia de nada. Nem o que sentir. O relógio compassava o coração apertado. O pânico começava a notar-se. Eu apagava-me a cada instante.
A agitação tomou conta da minha mãe, pouco paciente, exigia respostas que tardavam. Era evidente o desconhecimento. Ela conhecia-me. “É a minha filha, eu sei que não está bem”. Soube-o, desde logo. Passava-se algo grave. Muito grave. Ela sabia-o. ela sentia-o.
Após sete horas de uma espera infernal, entrei em coma durante longos e serenos treze dias. Então soube-se. Bastou que me observassem com sabedoria.
Um erro. Crasso. Acontece.
O desespero dos dias que passaram incertos, não o soube, não o senti. Talvez tenham pedido que Ele me levasse. Ou rezado infinitamente por mais um sopro de vida. Não o sei.
Acordei. Não falava. Falava, sim. Não me entendiam. Não andava. Não me mexia. Não entendia. Não choravam. Traziam os olhos vermelhos mal disfarçados.

Se eu percebia, não. Não percebia nada. Tinha sido um aneurisma profundo que me atingira o lado esquerdo do cérebro e me paralisara totalmente o lado direito. Algo congénito. Talvez. Percebe?

Sim, acho que percebia. Tinha sede. Sede. Não compreendiam. Tinha fome. Queria … pois, não valia a pena. Que não me preocupasse. Que passava. Paciência. Calma. Eu já tinha percebido.

E, agora, quando fico boa? Quando posso ir embora? Estava farta! Não. Em breve. Não ia ficar boa. E, em breve, iria embora, para casa, com aquilo. Depois ver-se-ia. Como assim?

Devem estar enganados, pensei. Só podem estar enganados. Mas eu estava tão bem. Não sabem o que dizem. Mas sabiam. Bem, apenas em parte!

Passaram-se mais de vinte anos. A hemiparesia total direita permanece (mas falo, falo por sete cotovelos), dizem que a massa neurológica responsável pela coordenação motora se foi. Do mal o menos. Havia solução! Uma cirurgia inovadora do outro lado do mundo, na terra do Tango de Gardel, encerraria este capítulo e, depois, anos a fio de intensa fisioterapia, provaram-no. Se assim era, assim seria.
Renascia e, por isso, haveria de agradecer, mais tarde.

3 thoughts on “Voar Voando

Gostou? Que bom! Deixe um comentário. Até breve!