Agarrei-me à vida com a força de quem sabe o que é a morte.
Quando a vida nos premeia com uma segunda chance nem sempre traz cartão no embrulho. Abri-lo traz infinitas possibilidades e não tendo guia predefinido faz-nos seguir o instinto. E o instinto, sendo bom conselheiro, não preenche a ordem de instrução para que tudo dê certo, principalmente quando não fazemos a mínima ideia de qual o caminho a seguir.
Os primeiros anos foram de adaptação numa cordilheira de emoções, estados físicos e psíquicos agrestes. Ia-me definindo como quem percorre um trilho difícil com o essencial: a água que aclara as ideias e a lâmina que corta o denso mato, obstáculo à passagem.
Desbravar estas trevas foi, de facto, um desafio de sobrevivência. O processo de auto-destruição seguia numa roda livre, sem freio. Procurava desesperadamente por mim e não me encontrava. E afundava em lodos movediços, que se de início me iludiam, logo me sugavam sequiosos do alheio.
O futuro opaco era desprovido de sentido, e respirava por necessidade vital, perdida. Mas seguia.
A realidade moldava-se por caminhos misteriosos, alimentada de sinais que me mostravam, sem o saber, o caminho.
Praticava a escrita, agora canhota, rabiscando linhas e páginas de gatafunhos ilegíveis que queria perfeitos. Tinham passado dois anos, regressava à faculdade, agora em novas instalações, e estava decidida a recuperar o tempo perdido. Fui bem aceite pelos novos colegas e as horas esfumavam-se rápidas demais para lamentos. A vida era para ser vivida e eu tinha pressa.
Eram os primeiros dias de novembro e ainda se sentia o calor do sol tímido e as manhãs eram passadas entre aulas e conversas de corredor. Nesta manhã particular, numa aula de Direito Internacional, eu havia chegado atrasada e sentara-me na fila vazia que me esperava. Ele chegou mais atrasado ainda. E, como eu, apanhou boleia nas únicas cadeiras vazias. Era tão bonito!
Nunca lá tinha estado, como os outros, e também não era como eles, os outros. Era diferente. Tinha olhos azuis (pareceu-me!) e o cabelo claro extravagantemente rapado nos lados com um moicano escasso mas que combinava com a tez clara. A mim, parecia-me uma das estrelas rock com que sonhara ainda menina. As calças justas de couro preto e a camisa branca dobrada nos punhos com o colete de pele sobreposto era a imagem da sedução. Apaixonei-me!
[Ele – disse-mo anos mais tarde – achara-me uma chata faladora, irritante, que questionava a professora por tudo e por nada. Mas era ruiva. E era gira!]
É, o amor entrava na minha vida atribulada como uma nascente que brota no alto da montanha e ultrapassa todos os obstáculos até chegar ao mar que na sua plenitude representa a vida. Assim foi, e tem sido, há vinte anos o amor pelo meu marido e dele por mim.
Entretanto, estava em Janeiro de ’99 e dava-se em mim o maior dos milagres. Contra todas as probabilidades. Todas as expectativas. Engravidei. Uma nova vida crescia em mim e começava a perceber que, se a maternidade me estava destinada, então tudo era possível. Desejei o meu filho com todo o amor do mundo. Só não sabia se iria ser capaz!
Em Setembro, em risco calculado, nasceu o Francisco! Que belo e sereno era e é! A vida dava-me muito mais do que pudera imaginar, dava-me tudo e eu agradecia!
mh
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