Dormi a minha primeira noite em terra desde há uns dias e soube-me bem. Estava exausta e não tinha noção disso, até acordar com o dia a clarear às cinco da manhã, na verdade começou a raiar pelas quatro e meia, tudo estava silencioso e, eu, deixar-me ficar de novo a dormir. O dia seria longo!
Quando me levantei, às oito, o dia já era quente, da rua ouvia pregões a vender fruta, carros e motas que seguiam o seu destino, portas a fecharem-se e vozes estrangeiras nos corredores. Estava na hora e a minha curiosidade chamava-me.
Desci para o café da manhã. Ficava no pátio da casa e tinha seis mesas. Apenas duas estavam livres. Apreciei a disposição em cima dos aparadores: frutas frescas, bolos tradicionais, pão de queijo caseiro, queijo e fiambre (ou presunto, dizem!), manteiga e compotas, vários pães frescos e saborosos, cereais integrais, sumos feitos na hora, café, leite, chá. E tudo o que nos apetecesse de fogão desde a tapioca à banana frita, ovos mexidos ou o simples estrelado (aqui chamam-lhe ovo frito!).
Adorei! Encontrei-me com os passageiros alemães que, em conversa, perguntaram se eu ia à orla (beira mar, entenda-se!), ao que disse que sim, mas de tarde. Logo ali combinamos um passeio, que a Kelly tratou de arranjar motorista e ainda de marcar jantar. Seria uma tarde perfeita terminada com chave de ouro!
Antes eu queria ir visitar o Pelourinho, em particular a Casa de Jorge Amado, e ver o Centro de Salvador de dia. Estava um dia quente mas nublado, achei que roupa fresca e vaporosa seria o ideal, até porque permitia esconder a bolsa que levava. O dinheiro já o tinha guardado nas sapatilhas. Não que eu achasse que era perigoso, mas a verdade é que ainda no navio me haviam vaticinado “Assim desse seu jeito, sozinha, vai ser assaltada em Salvador, quer apostar?”
Um exagero, achei!
Deram-me as dicas necessárias para me sentir segura: não aceitar a pulseira colorida, sorrir, não mostrar telemóvel, nem trocar dinheiro em público, ir por esta rua, não por aquela, enfim cuidados é sempre bom tê-los! Dir-me-iam, mais tarde, que “minha querida, todo Pelourinho fala da gringa branquela que anda sozinha!” Concluí que seria obviamente mais um exagero, que era, mas que talvez fosse verdade.
Eu não sou de medos. Saí e segui tirando fotografias acreditando no que via …
“Pratique a compreensão. Somos diferentes, mas somos todos humanos!”
Claro, foi o que pensei, um exagero!
Entrei na Rua do Carmo e apreciei os casarões coloridos, verdes, amarelos, rosas, azuis, bem cuidados, que reservavam interiores deliciosos, sempre com o quê de artístico, cultural ou musical. A Bahia é terra inspirada!
As ruas, às dez da manhã, apresentavam-se vazias, com um ou outro transeunte a passar de lés a lés, uma carrinha que descarregava alguma encomenda para o comércio local, e pouco mais. Completamente pacifico!
Chegada ao Convento do Carmo entrei e sentei-me a rezar … tinha tanto a agradecer e a comoção tomou conta de mim.
Sabia que esta aventura era algo muito pessoal, tão meu, que quando o decidi não perguntei nada a ninguém, não pedi conselhos, nem sugestões. Sabia também que muitos não entendiam, nem aceitavam, apenas o viviam porque assim os chamei a essa responsabilidade. Sabia ainda que a minha vida estava a mudar e eu de forma consciente vivia essa mudança.
Agradeci toda a minha vida passada e pedi proteção para tudo o que se estava a iniciar. Não sabia se era certo ou errado, sabia apenas que era o meu caminho.
À saída dei de caras, pela esquerda, com a Ladeira do Carmo que descia até ao Pelourinho, mas por aqui tinham dito para não ir, não fui. No regresso, decidi subi-la, percebi, mais à frente, porque não o devia ter feito.
Fui pela Rua do Passo, à minha direita, depois desci uma outra rua, e no fim dei uma volta muito maior e muito mais sinuosa, com paralelos moldados pelo tempo e sem forma exata. Um autentico quebra-cabeças para os meus pés. Mas lá cheguei ao Pelourinho!
As pedras da calçada, sujas e gastas, comoveram-me muito. Já sei, estou muito chorona! Mas é que um filme rebobinou na minha cabeça e, todas as músicas, todos os documentários, todos os livros, todas as páginas desfolhadas, todas as novelas, todos os grilhões, todo o sangue, todas as chibatas, vieram até mim, arrebatando-me.
A minha ligação ao Brasil é de raça negra, é de navios negreiros, é de escravos, é de passados longínquos, mas é também de redenção, de perdão, de paz.
Tudo fazia sentido!
Sentei-me nas escadas a contemplar toda aquela história viva e respirei fundo. As cores coloridas das casas contrastavam com o preto das gentes que sorriam …
– Minha linda, sorria está na Bahia … Aceite minha oferta!
– Não, querido, obrigada … dessas eu tenho muitas e não as uso! – afastei o guia improvisado.
– Mas estou lhe oferecendo e não se recusa o que é do coração – tentava ele.
– É, eu sei, mas não quero, não. – terminei o assunto.
– É brasileira? Ah, nem vale a pena … Ah, é gringa? As gringas já não são como dantes, agora ninguém aceita nada! Minha querida, sorria está na Bahia! Aceite minha oferta … – tentava agora num casal mexicano, que aceitou, acabando a comprar mais uns quantos colares que vinham juntos com a “oferta”.
Inofensivo!
Levantei-me e estava agora de frente para o casarão azul da Fundação da Casa de Jorge Amado.
Passaria um par de horas perdida entre os livros, as curiosidades, os prémios, os objectos, as roupas de Jorge Amado. Mas esse tempo precioso vale um capitulo à parte.
Entretanto o tempo passou e decidi comer uns “quitutes” à la Gabriela e Seu Nacib e acabei a deliciar-me com um pastel de camarão e outro de carne. E aprendi um lema para a vida, para a minha vida “Se for de paz, pode entrar.”
E, em paz, voltava à pousada para me refrescar, adoro os banhos a toda a hora, e seguir para o passeio à orla de Salvador. Decidi, tão segura me sentia, subir a Ladeira do Carmo, a tal que não era aconselhado descer, e fui airosa e o mais turista que se pode ser, deslumbrada e de cabeça no ar a admirar tudo. Vi crianças, muitas, que me chamavam, que pediam.
– Aí, tia, dá um troco, dá … – atiravam.
Velhas, muitas velhas, mesmo velhas de gastas, usadas, estavam sentadas na soleira da porta de suas casas e olhavam-me. E havia também quem de dentro me olhasse, e eu não visse, mas sentisse. De repente, percebi. Vai ser agora.
Não, não era seguro. Segui atenta, mas preparada.
Já de novo no Carmo não havia ninguém na rua, apenas eu e passos atrás. Eram dois. Uns moleques, de uns treze, talvez quinze anos, falavam descontraídos e alto que se ouvisse, eu ouvia. Mais à frente, quase já na Santo António, um deles atravessa a rua e segue à esquerda por uma ladeira estreita. O outro, em segundos, deita a mão, talvez os dedos, ao cordão dourado, foleiro, pechisbeque, da minha bolsa portuguesa (porque vermelha, amarela e verde) que após o puxão logo rebentou e resvalou para debaixo de um carro. Pronto já está!
Desatei a insulta-los, gritando … sem saber muito bem o que fazer até que chegou um senhor de mota e me acalmou.
– É, infelizmente é assim … não querem trabalhar, são uns malandros … mas a menina está bem? Quer um copo de água? Quer que chame alguém? Ah, está sozinha! Pois, aí é mais difícil!
Não era não. Enchi o peito de ar, meti a mala, com o telemóvel dentro, debaixo do braço e, a tremer, fiz os quinhentos metros que me separavam do meu porto seguro. Cheguei, contei o que tinha sucedido. Bebi água. Subi e desabei debaixo da água fria que me confundia o sal das lágrimas.
Já está! Agora estás segura! E estava.
mh
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