O Brasil tem várias diferenças horárias em relação à Europa. Menos duas no Rio de Janeiro. Menos três na Bahia. Menos quatro no Acre. Depende do estado, mais a sul ou a norte. Interior ou litoral. Durante a travessia teria de me adaptar ao horário de Salvador, e mais tarde do Rio, e outra vez da Bahia e novamente do Rio. Confuso? Imagino que sim!
Ora na travessia, comecei com o horário de Espanha, por isso de Inverno, em que o sol nascia a horas “normais” e se “deitava” antes do jantar, Ainda assim, com mais uma hora que Portugal. Durante os próximos dias iria atrasar um hora a cada dois dias. Isto não teria grande importância se estes, já de si longos, não ganhassem uma hora. Confesso que no primeiro atraso não notei grande diferença e assim pensei que fosse ser.
O navio percorria duas mil oitocentas e setenta milhas por dia para no fim realizar os sete mil quilómetros que nos distanciava da Europa à América do Sul. O relaxamento começa a atingir toda a gente e só se ouve bocejar. De repente, as sestas da tarde multiplicam-se e são sestas da manhã também. Muito se dorme a bordo.
As sestas da tarde transformam-se em cinco, seis horas de sono, perde-se o jantar. Acordo de madrugada. Tanto às duas como às cinco da manhã, vagueio pelos corredores vazios a espantar o despertar. Percebo que não estou sozinha e os corredores estão concorridos.
Por estes dias, meia viagem estava realizada, os rostos eram conhecidos, os acenos circunstanciais, as conversas evoluíam à medida da intimidade que crescia ou da empatia que era imediata. Atrasávamos as horas para avançar até ao nosso destino. Ao destino de todos. Mas para muitos, como para mim, o destino era um sonho. E o sonho para muitos também, como para mim, já se vivia a bordo.
É por esta altura que apenas me guio pelas refeições até vir a perdê-las por absoluta desorientação temporal. Acresce não dormir mais que três, quatro horas por noite. E o apetite desaparecer quase por completo. Entendi que estava embalada pelo mar e nada havia a fazer. Começo a escrever a todas as horas, em todos os sítios, sobre tudo e todos.
Nasce no meio deste tempo estranho de recuos a ideia daquela que será mais uma grande aventura, o romance literário. Escrevia sem parar, sem regra, sem enredo, apenas com personagens. O dia surgia muito cedo e fugia ainda a horas vespertinas, e eu absorvia todas as vivências partilhadas à minha volta. A vida fora de terra começava a criar uma fantasia que a realidade não comporta e com isso perdia-me entre páginas e páginas de outras vidas, que não eram as minhas.
Quando terminaram os nove dias de atrasos constantes, percebia, deslumbrada, o quanto a minha vida tinha avançado. É, a vida é feita destas contradições!
mh
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One thought on “Atrasar para Avançar”