Tripulação Embarcada

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Escrever a bordo tornou-se uma delícia, enquanto não descobri outras coisas para fazer. De repente, inspiro-me em tudo, em todos. A bordo estavam mil passageiros e cerca de seiscentos tripulantes. Este navio fez uma travessia que é a reposição do barco na primavera e verão da América do Sul. Não funcionou como um cruzeiro turístico normal.

Grande parte da tripulação, proveniente de mais de trinta países, já estava embarcada há cerca de seis meses, pois fez toda a primavera e verão europeu. A vida a bordo, soube-o na primeira pessoa, não era fácil, mas compensava monetariamente o sacrifício. No entanto, os sentimentos variam muito desde a alegria absoluta até à mais profunda angustia. Falo deles porque percebo que estamos todos no mesmo barco, não há fotografias de registo, prefiro as palavras.

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Diego, vinte e poucos anos, natural São Paulo, vai ser pai brevemente, não gosta do Brasil e não quer voltar a viver lá. Sorri, falando espanhol, inglês e português. Serve o café solo ou o café com leite, conforme o pedido. Diz que é licenciado em turismo. Embarca duas vezes ano, quer isto dizer que está em terra pouco mais que um mês. Gosta de futebol, gosta muito até, mas da liga italiana. É tiffosi do Inter de Milano. Que se encontra na hora da amargura nesta época, mas vai melhorar, e tem saudades, saudades do tempo em que o Mourinho ganhou tudo. Do futebol brasileiro? Não gosta, não gosta nada. Diz que é tudo muito sujo. E corrupto também.

Ainda não sabe, o Diego, mas sujidade e corrupção são sinónimos e nos dias que correm não têm nacionalidade, nem bandeira, nem religião.

Mas é isso, gosta mesmo é de Itália, onde tem uma namorada brasileira que engravidou recentemente e, por isso, só vai estar embarcado até aos seis meses de gravidez dela. Depois regressa à Europa e só volta a embarcar quando a criança, que ainda não nasceu, fizer um mês.

Termino o café da manhã como todos lhe chamam a considerar para mim que este jovem rapaz não vive o agora, apenas se sabe projetar no futuro. Concluo que com a idade dele é assim que é, lembro-me vagamente, eu que agora só sei viver o hoje.

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Saio para o exterior, e instalo-me discretamente a ler junto com outros passageiros que, como eu, ainda não tomaram pulso ao quotidiano do navio. Passo na parede de escalada onde, sentado, desanimado, está o rapaz que nos apresentara o navio, no dia de embarque, e que tinha um sorriso e uma alegria contagiante, que a mim me deixou bastante confiante. Mas aprendi, embora já o soubesse, que nada é necessariamente o que aparenta ser.

Wellington, 28 anos, interior de São Paulo, entediado. Está sentado no chão que dá acesso à subida da parede de escalada, algo que jamais farei, localizada na popa, e nem é uma questão de medo, é mesmo do ridículo que é aquela pretensiosa montanha de borracha, de repente, como tudo a bordo. Ou quase tudo.

Vive-se uma ilusão de vida perfeita que se torna impossível com o passar dos meses, que mina as mentes e os corações de quem está à tempo demais em alto mar, sem ter para onde ir, mas que assim que tem, não se sabe mais estar. Percebi que uma simples travessia de nove dias também nos dá essa sensação.

O rapaz, aparentemente bem-apessoado, com trejeitos vá-se lá saber de quê, fala à sopinha de massa e o sorriso encantado que transmitiu dois dias antes, na apresentação do navio, esvai-se como as ondas.

É difícil a vida a bordo. Há muita inveja (digo-lhe que em terra também). E trabalhamos sete dias por semana e quando não trabalhamos, nos mesmos sete dias por semana, estamos cá. Com os mesmos. Uns namoram. Outros até são casados. E há quem esteja só. É terrível estar só. Ganha-se bem (diz). Mas temos de poupar tudo o que se ganha, em euros ou dólares, para quando cambiarmos por reais ficarmos a ganhar.

Diz-me que os passageiros espanhóis são os piores. Mal-educados. Sempre com pressa. Com hora marcada para tudo. Esta travessia é que é diferente. Que há de tudo (é verdade, penso). E que é bom ouvir falar brasileiro. Mas que não volta ao Brasil. Quer ir para Chicago porque na América é que se vive bem. Será?

Vive-se bem onde se está feliz e com quem se é feliz. No mar fui muito feliz, não era terra de ninguém. E aprendi, a muito custo mas fiel ao princípio da verdade, que mesmo no paraíso, se estiver infeliz não há sonho que o omita.

Bárbara, portuguesa, de Leça da Palmeira, vinte e poucos anos, massagista no Spa del Mar. Simpática, bonita, embora a maquiagem do género travesti de Músic hall não a favorecessem. Mais tarde, iria vê-la delicadamente maquiada e que bem lhe ficava. Trabalha muitas horas seguidas. Ganha bem. Tem muitas saudades de casa, dos pais. Mas não se arrepende. Gosta de viajar. Agora vai estar pelo Brasil mas prefere o Mediterrâneo. Tenta, sem forçar, vender os cosméticos de luxo caríssimos para os papos dos olhos, para as rugas finas do rosto, para a retenção de líquidos, para a celulite, para hidratar a pele, para esfoliar também.

Não compro nada. Ela não insiste. Percebo que ganha comissão sobre as vendas, mas não lhe devem fazer falta. À Barbara verei sempre um sorriso, suponho que estava bem.

Quanto mais estruturada era a família que tinham deixado, notava que melhor estavam e viviam a vida de marinheiros turísticos. Aqueles que fugiam de algo ou até de alguém sofriam e nuns mirava-se bem mais do que outros. Embora houvesse quem disfarçasse muito bem.

Shirley, camareira da minha cabine. Brasileira do interior, negra, nova (não lhe soube a idade), linda, sempre com um sorriso no rosto. Tinha dois filhos que deixara com a mãe. Dizia que tinha muitas saudades, mas bom mesmo era ganhar dinheiro para sustentar os filhos e ajudar a mãe. Mas custa , custa muito. E sorria, sorria sempre. Sempre disponível gostou de me saber sozinha. A vida deve ser vivida, disse-me, e por vezes sozinha para pensar, em nós, e nos outros, mas sempre em nós.

Deixou-me a pensar a bela Shirley.

Outros houve com quem troquei nome de livros, com quem partilhei a mesa de jantar, noite após noite, uns a servir, outros a serem servidos,   quem servia os drinks da tarde. Ou da noite.

A vida nunca é o que aparenta ser. E ali, onde tantos trabalham, e outros vivem dias de ilusão, torna-se mais evidente que nunca, que ninguém encontra o seu caminho se não o procurar. É uma travessia atlântica mas é também uma mudança de vida.

mh

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